quinta-feira, 11 de abril de 2024

Voltando Para Casa

UM CONVITE À ORAÇÃO

por: Richard Foster*

A verdadeira e completa oração não é outra coisa 

senão o amor

 Agostinho 


Deus, por sua graça, tem-me permitido vislumbrar parte de seu coração, e eu gostaria de compartilhar com você o que tenho visto. Hoje o coração de Deus é como uma ferida aberta de amor. Ele sofre com nosso distanciamento e nossa preocupação. Ele lamenta o fato de não nos aproximarmos dele. Ele se angustia por havermos nos esquecido dele. Ele chora por causa de nossa obsessão de querer mais e mais. Ele anseia por nossa presença. 

Ele está nos convidando — a você e a mim — a voltar para casa, a casa a que pertencemos, a casa em que fomos criados. Ele nos espera de braços abertos. Seu coração é grande o suficiente para nos acolher. 

Vivemos ansiosos num país distante: um país em alvoroço, de multidões apressadas; um país de escaladas, empurrões e atropelos; um país de frustração, medo e intimidação. E ele nos convida a voltar para casa: para o lar de serenidade, paz e alegria; para o lar de amizade, companheirismo e sinceridade; para o lar de intimidade, aceitação e afirmação. 

Não precisamos ficar apreensivos. Ele nos convida à sala de estar de seu coração, onde podemos calçar os velhos chinelos e desfrutar o momento. Ele nos convida à cozinha de sua amizade, onde conversas e massas de bolo se misturam num ambiente alegre. Ele nos convida à sala de jantar de seu poder, onde podemos nos banquetear e alegrar nosso coração. Ele nos convida à sala de estudos de sua sabedoria, onde podemos aprender e nos desenvolver... e fazer todas as perguntas que desejarmos. Ele nos convida à oficina de sua criatividade, onde podemos ser seus auxiliares, trabalhando juntos para forjar nosso futuro. Ele nos convida ao quarto do descanso, onde nova paz é encontrada e onde podemos ficar à vontade, nus e vulneráveis. O quarto é também o lugar da mais profunda intimidade onde conhecemos e somos conhecidos plenamente.

* Richard Foster é autor renomado de vários best-sellers, teólogo, professor na Friends University e pastor da Evangelical Friends Churches. Fundador da RENOVARÉ, uma organização cristã voltada para a renovação da igreja. Mora em Denver, Colorado, EUA. Um de seus livros mais conhecidos é Celebração da Disciplina onde o autor apresenta com originalidade uma combinação entre espiritualidade e integridade intelectual. O texto acima consta em outra obra: Oração: o refúgio da alma, pela editora Vida. 

quarta-feira, 20 de março de 2024

O que deixa sua igreja mais animada?

Através do poder das perguntas, podemos desvendar o que realmente move uma comunidade de fé. Algumas perguntas geram silêncio, outras reflexão, mas há uma que se destaca por gerar um diálogo vibrante: 

"O que mais te anima em relação à nossa igreja?"


Se existe um segredo dos grandes líderes, então, certamente deve ser a arte de fazer perguntas que inspiram. E entre todas elas, uma se destaca por abrir as portas para um diálogo rico e revelador: "O que mais te anima em relação à nossa igreja?"

O poder dessa pergunta reside em sua simplicidade e positividade. Ela convida as pessoas a compartilharem o que as entusiasma, sem qualquer tipo de julgamento. Ao mesmo tempo, direciona o foco para o que realmente importa: a paixão que move a igreja. A resposta se torna um resumo vívido do que nutre a fé de cada membro.

A resposta à pergunta é uma janela para a alma da igreja. A palavra "animação" traduz o entusiasmo que pulsa no coração dos membros. Através de suas respostas, descobrimos o que os motiva e inspira. As respostas variam amplamente, abrangendo desde a teologia e os programas até a missão, a pregação e a estrutura física da igreja. Raramente encontramos negatividade, pois as pessoas se concentram no que as motiva e as conecta à comunidade.

O que nos anima geralmente se torna uma prioridade em nossas vidas. Aquilo que desperta paixão na igreja também é elevado a um lugar de destaque.

A resposta à pergunta também revela a perspectiva da pessoa em relação à igreja. O entusiasmo está enraizado no passado, vibrante no presente ou direcionado para o futuro? A animação em relação ao passado pode indicar uma nostalgia pela tradição, enquanto a empolgação com o futuro sugere esperança em um caminho positivo ou a expectativa de mudanças positivas.

A resposta à pergunta nos permite desvendar a alma da igreja, revelando sua personalidade única. Cada comunidade de fé possui características distintas, expressas em seus membros. Algumas igrejas exalam extroversão, acolhendo com entusiasmo novos rostos. Outras se inclinam para a reflexão, nutrindo um ambiente propício ao cuidado mútuo. Já outras transbordam generosidade, inspirando seus membros a contribuir com alegria para o reino de Deus. A animação da igreja, portanto, é um reflexo de sua própria essência. 

É importante lembrar que uma única pergunta não revela todos os segredos de uma igreja. No entanto, questionar sobre o que anima as pessoas abre um diálogo rico e revelador, sem qualquer tipo de constrangimento. Essa é uma das perguntas que pastores e líderes podem incorporar em suas conversas e reuniões de equipe, pois permite ouvir diferentes perspectivas e participar de conversas positivas e inspiradoras.


Convido você a fazer o mesmo: pergunte a algumas pessoas da sua igreja "O que mais te anima em relação à nossa igreja?". Tenho certeza de que se surpreenderá com a riqueza de respostas e insights que receberá. Essa é uma oportunidade para se conectar com sua comunidade, fortalecer laços e construir um futuro ainda mais vibrante para a fé.

quarta-feira, 13 de março de 2024

Páscoa: a afirmação do Absoluto sobre os poderes do mundo

É do conhecimento de todos que a Páscoa envolve a história de Jesus, que foi condenado à morte numa cruz e, depois, ressuscitou dos mortos. A Páscoa cristã celebra essa ressurreição, um evento central na fé cristã. Mas, se a ressurreição é o foco da Páscoa cristã, o que o povo judeu celebrava antes disso? Afinal, eles já tinham uma Páscoa, com uma história e significado próprios. 

A cruz não conseguiu vencê-lo!
A cruz não conseguiu vencê-lo!

Sim, o povo judeu celebrava a Páscoa como a libertação do povo de Israel da escravidão no Egito, na história de Moisés. Jesus, de certa forma, representa a continuidade dessa história. Tudo se inicia com o relato da criação do mundo e de todas as coisas, incluindo as plantas, os animais, os seres humanos e, claro, a origem do mal. 

O último verso do primeiro capítulo da Bíblia afirma que, ao criar as coisas, "Deus viu tudo o que havia feito, e tudo era muito bom" (Gênesis 1:31). No entanto, se Deus criou um verdadeiro paraíso e tudo era perfeito, de onde surge o mal? Por que existem a dor, o sofrimento, a injustiça, a poluição, a corrupção? De onde vem a violência que leva pessoas a se unirem para pregar outras numa cruz?

A Bíblia é mais realista do que muitos imaginam. Logo no início, encontramos a observação de que “a perversidade humana tinha aumentado na terra” (Gênesis 6:5) e que toda “terra se corrompera” (Gênesis 6:12). A Bíblia e a tradição cristã explicam isso como o resultado do ser humano negar sua origem e buscar se afirmar autonomamente sobre a terra.

Quando nos afastamos de nossa herança cristã, datas como a Páscoa e o Natal se reduzem a celebrações comerciais. Restam apenas tradições vazias, destituídas de significado. Deus é visto como inexistente ou como um poder impessoal, uma força ou energia imprecisa e distante. O absoluto se perde. 

Somente quando reconhecemos um poder superior e absoluto seremos capazes de aceitar nossa condição relativa. Essa aceitação nos leva à humildade necessária para ver o outro como o próximo e também sermos o próximo do outro. Estaremos livres para uma condição de humildade que nos permite ceder, perdoar, dialogar, cooperar e servir.

Sempre que atacamos, negamos ou ignoramos a figura central maior do Universo, a tendência é acharmos que nós mesmos ou algum outro elemento do Cosmo é capaz de assumir esse papel de absoluto. Esse caminho leva, inevitavelmente, ao totalitarismo, à tirania, à violência e a todo tipo de consequências que o ego e a vaidade exacerbada são capazes de produzir.

E, assim, está aberto o caminho para que inúmeros candidatos a assumir o lugar de Deus saiam por aí para impor sobre os outros a sua vontade. Para isso, instrumentalizam tudo aquilo que têm como recurso disponível: a ciência, a educação, as instituições, o dinheiro, a política, a comunicação e, claro, a religião. Nada mais é instrumento a serviço do mundo e das pessoas, mas, tão somente um meio para tentar se impor, se projetar, conquistar e controlar. Este é um cenário visto em toda a história mundial. Por isso, Jesus é fundamental. Nele, Deus vem ao mundo numa demonstração de entrega, de serviço e de amor.

Os poderosos do mundo não podem aceitar o verdadeiro absoluto, que demonstra o quanto são relativos, contingentes e limitados. O Estado e a Religião se unem para pregar na cruz a mais poderosa demonstração de humildade e serviço que o mundo já viu. Desde então, a cruz, um instrumento de tortura e de condenação à morte, foi assumida como símbolo de esperança: a esperança que transcende a cruz e deixa para trás um túmulo vazio. Os poderes da morte e da maldade não têm a última palavra na história!

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

DIETRICH BONHOEFFER E O CASAMENTO: um 'sim' para o mundo de Deus

Embora ainda não fosse algo público, quando Dietrich Bonhoeffer foi preso ele estava noivo de uma garota de dezoito anos chamada Maria von Wedemeyer. Apesar dos sonhos de casamento entre os dois, a união nunca chegou a se concretizar. O namoro se resumiu a cartas trocadas entre eles e a dezessete visitas que Maria pode fazer à prisão. Numa dessas cartas Bonhoeffer expressou sua ideia a respeito do casamento como um 'sim' para o mundo de Deus. 
Essa ideia sobre o matrimônio não se resumia ao seu futuro casamento em particular, mas, para o casamento como ato de fé e esperança. Bonhoeffer expressou algo nesse sentido para dois amigos quando estes compartilharam seus próprios planos de casamento. Numa carta à Maria, Bonhoeffer diz:

"Nosso casamento deve ser um ‘sim’ ao mundo de Deus. Tem de fortalecer nossa resolução de realizar e concluir algo na terra. Temo que aquele que se aventura a manter-se no mundo sob uma única perna permanecerá numa única perna também no paraíso". 

Na mesma época em que estava preso, uma sobrinha de Bonhoeffer estava de casamento marcado com Eberhard Bethge, seu melhor amigo e biógrafo. Bonhoeffer chegou a trabalhar num sermão que pretendia usar nesse casamento:

"Ao acrescentar o 'sim' dele ao 'sim' de vocês, ao confirmar a vontade dele com a sua vontade, e ao permitir e aprovar o seu triunfo e regozijo e orgulho, Deus os transforma ao mesmo tempo em instrumentos da vontade e do propósito dele tanto para vocês mesmos quanto para os outros. Em sua condescendência insondável, Deus acrescenta o 'sim' dele; mas, ao fazê-lo, ele cria, do amor de vocês, algo novo — o bem sagrado do matrimônio". 

Dietrich Bonhoeffer revelou que mantinha uma ideia bastante elevada a respeito do casamento. Para ele o matrimônio era “mais do que o amor mútuo”, trata-se de algo que “possui força e dignidades superiores, pois é ordenança sagrada de Deus, por meio da qual ele quer perpetuar a raça humana até o fim dos tempos”. 

Uma frase memorável resultou dessa reflexão tão profunda de Bonhoeffer a respeito do casamento:

"Não é o amor de vocês que sustenta o casamento, mas de agora em diante é o casamento que sustenta o amor de vocês”. 

O amor de Bonhoeffer por Maria e sua fé em Deus o sustentaram naqueles meses que antecederam sua fatídica condenação. As cartas entre Dietrich e Maria revelam uma faceta pouco conhecida da história do mártir alemão.

terça-feira, 14 de novembro de 2023

Por Que Agora Sou Cristã

O ateísmo não pode nos preparar para a guerra civilizacional

Ayaan Hirsi Ali
Ayaan Hirsi Ali

Em 2002, descobri uma palestra de Bertrand Russell no ano de 1927 intitulada 'Por Que Não Sou Cristão'. Não passou pela minha cabeça, enquanto lia o texto, que um dia, quase um século depois de ele tê-lo apresentado à filial sul da National Secular Society, eu seria compelida a escrever um ensaio com um título precisamente oposto.

No ano anterior, eu havia condenado publicamente os ataques terroristas dos 19 homens que haviam sequestrado aviões de passageiros e os colidiram contra as torres gêmeas em Nova York. Eles haviam feito isso em nome da minha religião, o Islã. Eu era muçulmana na época, embora não praticante. Se eu realmente condenava as ações deles, onde isso me deixava? O princípio subjacente que justificava os ataques era religioso, afinal: a ideia de Jihad ou Guerra Santa contra os infiéis. Era possível para mim, como para muitos membros da comunidade muçulmana, simplesmente me distanciar da ação e de seus resultados horríveis?

Na época, havia muitos líderes proeminentes no Ocidente — políticos, acadêmicos, jornalistas e outros especialistas — que insistiam que os terroristas eram motivados por razões diferentes das que eles e seu líder Osama Bin Laden haviam articulado tão claramente. Assim, o Islã tinha um álibi.

Essa desculpa não era apenas condescendente para com os muçulmanos. Também deu a muitos ocidentais a oportunidade de se refugiar na negação. Culpar os erros da política externa dos EUA era mais fácil do que contemplar a possibilidade de estarmos enfrentando uma guerra religiosa. Vimos uma tendência semelhante nas últimas cinco semanas, à medida que milhões de pessoas simpáticas à situação dos palestinos da Faixa de Gaza buscam racionalizar os ataques terroristas de 7 de outubro como uma resposta justificada às políticas do governo israelense.

Quando li a palestra de Russell em 2022, encontrei meu desconforto cognitivo diminuindo. Foi um alívio adotar uma atitude cética em relação à doutrina religiosa, descartar minha fé em Deus e declarar que tal entidade não existia. Melhor ainda, eu poderia rejeitar a existência do inferno e o perigo do castigo eterno.

A afirmação de Russell de que a religião se baseia principalmente no medo ecoou em mim. Eu havia vivido por muito tempo com o terror de todas as punições horrendas que me aguardavam. Embora eu tivesse abandonado todas os motivos racionais para acreditar em Deus, aquele medo irracional do fogo do inferno ainda persistia. A conclusão de Russell, portanto, veio como um alívio: 'Quando morrer, vou apodrecer'.

Para entender por que me tornei ateia há 20 anos, você primeiro precisa entender o tipo de muçulmana que eu era. Eu era um adolescente quando a Irmandade Muçulmana penetrou na minha comunidade em Nairóbi, Quênia, em 1985. Acredito que eu nem havia entendido a prática religiosa antes da chegada da Irmandade. Eu suportava os rituais de abluções, orações e jejuns como tediosos e sem sentido.

Os pregadores da Irmandade Muçulmana mudaram isso. Eles articularam uma direção: o caminho reto. Um propósito: trabalhar para ser admitida no paraíso de Alá após a morte. Um método: o manual de instruções do Profeta do que fazer e do que não fazer — o halal e o haram. Como um suplemento detalhado do Alcorão, os hadiths explicavam como colocar em prática a diferença entre certo e errado, bem e mal, Deus e o diabo.

Os pregadores da Irmandade Muçulmana não deixaram nada para a imaginação. Eles nos deram uma escolha. Esforce-se para viver de acordo com o manual do Profeta e colha as gloriosas recompensas no além. Nesta terra, enquanto isso, a maior conquista possível era morrer como mártir pela causa de Alá.

A alternativa, de se entregar aos prazeres do mundo, significava atrair a ira de Alá e ser condenada a uma vida eterna no fogo do inferno. Alguns dos "prazeres mundanos" que eles condenavam incluíam ler romances, ouvir música, dançar e ir ao cinema - coisas as quais eu tinha vergonha de admitir que adorava.

A qualidade mais marcante da Irmandade Muçulmana foi a capacidade de transformar a mim e aos meus colegas adolescentes de crentes passivos em ativistas, quase da noite para o dia. Não apenas falávamos ou rezávamos por coisas: fazíamos coisas. Como meninas, vestíamos a burca e renunciávamos à moda e maquiagem ocidental. Os meninos cultivavam a barba o mais comprida possível. Usavam a tawb branca, semelhante a um vestido, usada em países árabes, ou tinham as calças encurtadas acima dos ossos do tornozelo. Atuávamos em grupos e voluntariávamos nossos serviços para a caridade aos pobres, aos idosos, aos deficientes e aos fracos. Instigávamos os muçulmanos a rezar e exigíamos que os não muçulmanos se convertessem ao Islã.

Durante as sessões de estudo islâmico, compartilhávamos com o pregador responsável pelas sessões as nossas preocupações. Por exemplo, o que deveríamos fazer em relação aos amigos que amávamos e éramos leais, mas que se recusavam a aceitar nossa dawa (convite à fé)? Em resposta, éramos lembrados repetidamente sobre a clareza das instruções do Profeta. Foi-nos dito de forma inequívoca que não poderíamos ser leais a Alá e Maomé e, ao mesmo tempo, manter amizades e lealdade para com os incrédulos. Se eles rejeitassem explicitamente nosso convite para o Islã, deveríamos odiá-los e amaldiçoá-los.

Aqui, um ódio especial era reservado para um subconjunto de incrédulos: o judeu. Amaldiçoávamos os judeus várias vezes ao dia e expressávamos horror, repugnância e raiva pela lista de supostas ofensas que eles haviam cometido. O judeu havia traído nosso Profeta. Eles ocuparam a Mesquita Sagrada em Jerusalém. Continuavam a espalhar a corrupção do coração, da mente e da alma.

Você pode ver por que, para alguém que passou por uma educação religiosa tão intensa, o ateísmo parecia tão atraente. Bertrand Russell oferecia uma fuga simples e sem custos de uma vida insuportável de autonegação e assédio aos outros. Para ele, não havia um motivo crível para a existência de Deus. A religião, argumentava Russell, estava enraizada no medo: "O medo é a base de tudo — medo do misterioso, medo da derrota, medo da morte."

Como ateia, pensei que perderia esse medo. Também encontrei um círculo totalmente novo de amigos, tão diferentes dos pregadores da Irmandade Muçulmana quanto se pode imaginar. Quanto mais tempo eu passava com eles — pessoas como Christopher Hitchens e Richard Dawkins —, mais confiança eu sentia de que havia feito a escolha certa. Os ateus eram inteligentes. Eles também eram muito divertidos.

Então, o que mudou? Por que agora me chamo de cristã?

Parte da resposta é global. A civilização ocidental está sob ameaça de três forças diferentes, mas relacionadas: a ressurgência do autoritarismo e expansão de grandes potências nas formas do Partido Comunista Chinês e da Rússia de Vladimir Putin; a ascenção do islamismo global, que ameaça mobilizar uma vasta população contra o Ocidente; e a disseminação viral da ideologia "woke", que está corroendo a fibra moral da próxima geração.

Procuramos repelir essas ameaças com ferramentas modernas e seculares: esforços militares, econômicos, diplomáticos e tecnológicos para derrotar, subornar, persuadir, apaziguar ou vigiar. No entanto, a cada rodada de conflito, nos vemos perdendo terreno. Estamos ou ficando sem dinheiro, com nossa dívida nacional na casa dos trilhões de dólares, ou perdendo nossa liderança na corrida tecnológica com a China.

Mas não podemos enfrentar essas forças formidáveis a menos que possamos responder à pergunta: o que é que nos une? A resposta de que "Deus está morto!" parece insuficiente. Da mesma forma, a tentativa de encontrar consolo na "ordem internacional liberal baseada na lei" também parece inadequada. A única resposta possível, acredito, reside em nosso desejo de manter o legado da tradição judaico-cristã.

Esse legado consiste em um conjunto elaborado de ideias e instituições projetadas para proteger a vida humana, a liberdade e a dignidade, desde o estado-nação e o estado de direito até as instituições da ciência, saúde e aprendizado. Como Tom Holland mostrou em seu maravilhoso livro Dominion, todas as liberdades aparentemente seculares — do mercado, da consciência e da imprensa — encontram suas raízes no cristianismo.

E assim, percebo que Russell e meus amigos ateus falharam em enxergar as árvores em vez da floresta. A floresta é a civilização construída sobre a tradição judaico-cristã; é a história do Ocidente, com suas imperfeições. A crítica de Russell às contradições na doutrina cristã é séria, mas também é muito estreita em escopo.

Por exemplo, ele proferiu sua palestra em uma sala cheia de cristãos (ex-cristãos ou pelo menos em dúvida) em um país cristão. Pense em como isso era único há quase um século e ainda é raro em civilizações não ocidentais. Poderia um filósofo muçulmano ficar diante de qualquer plateia em um país muçulmano — naquela época ou agora — e proferir uma palestra com o título "Por que não sou muçulmano"? Na verdade, um livro com esse título existe, escrito por um ex-muçulmano. Mas o autor o publicou nos Estados Unidos sob o pseudônimo Ibn Warraq. Seria perigoso fazer de outra forma.

Para mim, essa liberdade de consciência e expressão é talvez o maior benefício da civilização ocidental. Não é algo natural para o ser humano. É o produto de séculos de debate dentro das comunidades judaicas e cristãs. Foram esses debates que impulsionaram a ciência e a razão, diminuíram a crueldade, suprimiram superstições e construíram instituições para ordenar e proteger a vida, garantindo liberdade para o maior número possível de pessoas. Ao contrário do Islã, o cristianismo superou sua fase dogmática. Tornou-se cada vez mais claro que o ensinamento de Cristo implicava não apenas um papel circunscrito para a religião como algo separado da política, mas também implicava compaixão pelo pecador e humildade para o crente.

No entanto, eu não seria sincera se atribuísse minha adesão ao cristianismo apenas à percepção de que o ateísmo é uma doutrina muito fraca e desunida para nos fortalecer contra nossos inimigos ameaçadores. Também me voltei para o cristianismo porque, em última análise, descobri que a vida sem qualquer consolo espiritual é insuportável — quase autodestrutiva. O ateísmo falhou em responder a uma pergunta simples: qual é o significado e propósito da vida?

Russell e outros ateus ativistas acreditavam que, com a rejeição a Deus, entraríamos em uma era de razão e humanismo inteligente. Mas o ‘buraco de Deus’ – o vazio deixado pelo recuo da Igreja – foi preenchido por uma confusão de dogmas irracionais e quase religiosos. O resultado é um mundo onde os cultos modernos atacam as massas deslocadas, oferecendo-lhes razões espúrias para ser e agir, principalmente através do envolvimento em teatro de sinalização de virtude, em nome de uma minoria vitimizada ou do nosso planeta supostamente condenado. A frase frequentemente atribuída a G.K. Chesterton se transformou em uma profecia: "Quando os homens escolhem não acreditar em Deus, eles não acreditam em nada, tornam-se então capazes de acreditar em qualquer coisa."

Nesse vácuo niilista, o desafio que temos pela frente é civilizacional. Não poderemos resistir à China, à Rússia e ao Irã se não conseguirmos explicar às nossas populações por que é importante que o façamos. Não podemos lutar contra a ideologia woke se não pudermos defender a civilização que ela está determinada a destruir. E não podemos combater o Islamismo com ferramentas puramente seculares. Para conquistar os corações e mentes dos muçulmanos aqui no Ocidente, temos de lhes oferecer algo mais do que vídeos no TikTok.

A lição que aprendi nos anos com a Irmandade Muçulmana foi o poder de uma narrativa unificadora, incorporada nos textos fundamentais do Islã, para atrair, envolver e mobilizar as massas muçulmanas. A menos que ofereçamos algo tão significativo, receio que a erosão de nossa civilização continue. E, felizmente, não há necessidade de procurar alguma mistura de medicação e atenção plena da nova era. O Cristianismo tem tudo.

É por isso que já não me considero uma apóstata muçulmana, mas uma ateia decaída. Claro, ainda tenho muito a aprender sobre o cristianismo. Descubro um pouco mais na igreja a cada domingo. Descubro um pouco mais na igreja todos os domingos. Mas reconheci, na minha longa jornada através de um deserto de medo e de dúvidas, que existe uma maneira melhor de gerir os desafios da existência do que o Islã ou a descrença tinham para oferecer.


* Texto traduzido da publicação "Why I am now a Christian" de Ayaan Hirsi Ali, publicado originalmente no dia 11 de novembro de 2023. A autora é colunista da UnHerd. Acesse o texto original em inglês AQUI

Ayaan Hirsi Ali é pesquisadora no Hoover Institution da Universidade Stanford, fundadora da AHA Foundation e apresentadora do The Ayaan Hirsi Ali Podcast. Seu novo livro é "Prey: Immigration, Islam, and the Erosion of Women’s Rights" (Presa: Imigração, Islã e Erosão dos Direitos das Mulheres).

Ayaan Hirsi Ali é autora de livros com críticas contundentes ao Islamismo – como “A virgem na jaula: uma apelo à razão”, “Infiel: a história da mulher que desafiou o Islã” e “Herege: por que o Islã precisa de uma reforma imediata”.

Nascida e criada nos costumes tribais da Somália, ela sofreu mutilação sexual e espancamentos brutais na infância, foi muçulmana devota doutrinada pela Irmandade Muçulmana, até que, fugindo de um casamento forçado, deparou-se com a liberdade no Ocidente.

Dali em diante, renegou sua religião, virou ateia, lutou pelos direitos das mulheres muçulmanas, tornou-se deputada na Holanda, passou a morar nos Estados Unidos e a lecionar em Harvard, foi indicada pela revista Time como uma das cem pessoas mais influentes do mundo e está jurada de morte pelo fundamentalismo islâmico.


domingo, 29 de outubro de 2023

Uma Travessura às Vésperas do Halloween

Uma frase que lembro ter lido na traseira da carroceria de um caminhão quando eu era adolescente nunca mais esqueci: "falem bem ou falem mal, mas falem de mim". Somente mais tarde viria a conhecer a expressão "frase de para-choque de caminhão". E, só mais tarde ainda, entenderia que a lógica do 'curtir', 'comentar' e 'compartilhar' das redes sociais não se importa com o 'falem bem'. Não importa o que você diga e não importa se sua posição é contra ou a favor. O que vale é que o algoritmo conta a interação. Interagiu, seja para elogiar ou para criticar, seja com like ou deslike, você está favorecendo a popularidade do post. Isso explica muita coisa. Mas, deixemos esse papo de marketing do mundo das mídias sociais de lado por enquanto. 

O principal está claro: "falem bem ou falem mal, mas falem de mim". Traduzindo para as 'redes': "elogiem ou critiquem, ataquem ou defendam, mas, interajam comigo". E, assim, muitos acabam não se dando conta que seus esforços nas redes podem estar a serviço daquilo que acham estar combatendo. 

Melhor é estar a serviço do Espírito divino do que do inimigo cuja missão é matar, roubar e destruir. Melhor é estar com a Verdade do que com o pai da mentira. Se podemos estar, mesmo que involuntariamente, à serviço de forças superiores, a qual força servimos? 

Em sua biografia de Martim Lutero, Lyndal Roper destaca algo interessante ao relatar como o reformador encarou a viralização de suas famosas 95 teses: "Como Lutero teve coragem de lançar tamanho ataque ao papado e aos valores fundamentais da Igreja? Mais tarde, ele disse que, naquela época, estava como um 'cavalo vendado', obrigado a usar antolhos para se manter na linha reta. E rezava: 'Se Deus quer começar com essa brincadeira me usando, ele devia se virar sozinho, sem meter a mim (isto é, minha erudição) no meio disso'. Descreveu um estado mental em que não tinha pleno controle de suas ações e transferia a responsabilidade a um poder mais alto. Mais tarde, usou várias vezes a palavra 'Spil', jogo ou brincadeira, termo que em alemão pode ter conotações de frivolidade, para descrever as circunstâncias que envolviam a publicação das teses — como se Deus o estivesse usando para fazer alguma travessura e ele não respondesse plenamente pelo que fazia. Um jogo é também uma atividade cujo resultado não se conhece" (ROPER, Lyndal. Martinho Lutero: renegado e profeta. Rio de Janeiro: Objetiva, 2020). 

Sem doces, a travessura do monge naquela véspera do dia de todos os santos (A palavra Halloween é uma abreviação para a frase “All Hallows' Eve” ou “All Hallows' Evening” que – em inglês – significa a véspera de todos os santos) acabaria gerando consequências que mudaram a história. 

Cabe refletirmos sobre o que temos ajudado a propagar, seja voluntaria ou involuntariamente. A serviço de qual 'espírito' nos deixamos usar? Algumas 'travessuras' podem ser necessárias.

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

As verdadeiras Transformações Dependem de Indivíduos Transformados: Lutero e a Reforma

Um homem, uma palavra e um dia na história. O dia 31 de outubro do ano de 1517 ficou marcado como o dia da Reforma. Nesse dia, um monge irrequieto afixou noventa e cinco teses na porta da Catedral do castelo de Wittenberg, desencadeando um debate sobre práticas da igreja. Martim Lutero, o reformador do século 16, é uma figura que ecoa na história para aqueles que se interessam por história, igreja, teologia e cultura ocidental. 


A luta de Lutero com a igreja começou com inquietações profundas em sua alma. Sua batalha envolveu não apenas adversidades externas, mas principalmente seus próprios medos, dúvidas e pecados. Lutero questionava a salvação pessoal e a justificação diante de um Deus santo. Como poderia um Deus santo aceitar um ser humano pecador? 

A vida de Lutero revela que essa luta não é exclusiva dele, mas compartilhada por todos nós, pecadores que resistem à graça de Deus. Somos confrontados pela presença amorosa e redentora de Deus, mas muitas vezes confiamos em nossos próprios méritos, o que nos deixa dependurados em nossas fraquezas. 

Lutero também aprendeu que grandes instituições podem se corromper devido à fraqueza humana. Quanto maior uma instituição, maior seu poder e influência, tornando-se um terreno fértil para a corrupção. O poder e o dinheiro despertam cobiça, e a ambição por títulos e status atrai oportunistas. Lutero corajosamente desafiou essa corrupção e buscou respostas para suas perguntas mais profundas.

Nascido em 10 de novembro de 1483, em Eisleben, Alemanha, Lutero cresceu em uma família de classe média e mostrou interesse precoce pela educação e pelo estudo da lei. Ele ingressou na Universidade de Erfurt para estudar filosofia e direito, seguindo a tradição escolástica da época. 

Durante seus estudos filosóficos, Lutero foi profundamente influenciado pela filosofia escolástica, que buscava harmonizar razão e fé. No entanto, sua experiência pessoal e estudo das Escrituras o levaram a questionar as doutrinas e práticas da Igreja Católica Romana. Sua publicação das "95 Teses" desencadeou a Reforma Protestante, questionando a autoridade papal e enfatizando Jesus, as Escrituras, a fé e a graça de Deus. 

Lutero desenvolveu uma teologia reformada, destacando a justificação pela fé, defendendo que a salvação não depende de obras, mas da fé em Jesus Cristo como Salvador. 

Sua nova perspectiva representou uma ameaça e uma libertação. Rompeu com a autoridade de Roma e afirmou a autoridade de Cristo nas Escrituras, dando acesso a elas para todas as pessoas. Apresentou o Deus da graça, aceitação e perdão incondicional. 

A história de Martim Lutero nos inspira a enfrentar dúvidas, estudar as Escrituras com diligência e buscar uma fé autêntica. Podemos desafiar estruturas estabelecidas em busca da verdade e do crescimento espiritual. Que sua coragem e legado nos encorajem a enfrentar nossas próprias batalhas, confiando no poder transformador do evangelho. 

Que assim como no século dezesseis, vidas transformadas pelo Evangelho continuem a impactar o mundo a partir de verdadeiros discípulos, sal da terra e luz do mundo (Mateus 5.13-14).

sábado, 7 de outubro de 2023

Reforma Protestante: ideias devem ser compartilhadas

No século XVI, a internet ainda não existia, muito menos sites e blogs. Na verdade, Johannes Gutenberg tinha acabado de inventar a imprensa de tipos móveis no século anterior. A partir daí, a publicação de livros em maior escala e a preços mais acessíveis mudou para sempre a estrutura da sociedade. Com a queda de até 400 vezes no preço dos livros, a vida intelectual deixou de ser monopolizada pela igreja e pela corte. A alfabetização tornou-se uma necessidade na vida urbana. Um grande número de escritores, músicos, políticos, religiosos, cientistas, médicos e exploradores pôde compartilhar seu conhecimento e inspiração.
Foi no século XVI que um monge se incomodou com vários erros na igreja e lutou por reformas. A igreja católica era a guardiã da cultura ocidental e, durante a Idade Média, acumulou riqueza e autoridade sem precedentes. Além do poder político, o papa detinha o maior poder - as chaves do paraíso e do inferno. Esse poder era mantido principalmente porque a igreja controlava a informação, especialmente a interpretação da Bíblia Sagrada. Desiludido com a rigidez e o controle da igreja, o monge Martinho Lutero começou a estudar profundamente as Escrituras e ousou questionar o sistema vigente. Seu profundo desejo de perdão levou Lutero a estudar a Bíblia, onde compreendeu que o justo viverá pela fé (Romanos 1. 17). Essa nova visão da graça levou Lutero a questionar especialmente a interpretação e o controle da igreja sobre as Escrituras. 

Uma das questões que mais incomodaram Lutero foi a venda de indulgências. Quem comprasse uma indulgência das mãos de John Tetzel adquiria a liberdade das consequências temporais e até eternas do pecado. Foi então que Martinho Lutero decidiu que era hora de um debate maior sobre essas questões. Ele escreveu suas 95 teses e, no dia 31 de outubro de 1517, afixou-as na porta da Catedral de Wittenberg, na Alemanha. Essa era a maneira de apresentar os temas e iniciar uma discussão. Não se sabe quem, mas alguém imediatamente obteve uma cópia e traduziu as teses do latim para o alemão, publicando-as e distribuindo-as por todo o país. Em um mês, as teses de Lutero já estavam circulando por toda a Europa. Começava ali uma revolução que mudaria a história. Em uma época em que as informações eram controladas e manipuladas por uma única instituição, uma porta e uma imprensa se tornaram instrumentos de reforma. A porta de Wittenberg foi a rede social de Lutero para publicar suas ideias. A partir desse ponto, ninguém mais podia controlar a disseminação do texto e os debates que surgiam. Até hoje, nenhum post gerou tantos comentários e compartilhamentos!

sábado, 23 de setembro de 2023

A Carta aos Gálatas: Liberdade em Cristo e a Justificação pela Fé

 Você já leu a Bíblia hoje?

Que tal uma leitura e reflexão numa das cartas do apóstolo Paulo?

O que encontraremos nessa breve carta?

Introdução

A Carta aos Gálatas, encontrada no Novo Testamento da Bíblia, é uma das epístolas mais importantes escritas pelo apóstolo Paulo. Neste artigo, exploraremos o contexto histórico e teológico dessa carta e sua relevância contínua para a compreensão do cristianismo.



Contexto Histórico

A carta foi escrita por volta de 49-50 d.C., após a primeira viagem missionária de Paulo e o Concílio de Jerusalém. Durante essa viagem, Paulo visitou as igrejas na região da Galácia, que abrange a moderna Turquia. No Concílio de Jerusalém, os líderes cristãos chegaram a um acordo sobre a relação entre a fé em Cristo e a observância da Lei Judaica para os gentios convertidos.

O Conflito Teológico

Paulo escreveu a carta aos Gálatas em resposta a ensinamentos errôneos que surgiram nas igrejas da Galácia. Alguns cristãos judaizantes estavam ensinando que os gentios precisavam se submeter à circuncisão e à Lei Mosaica para serem verdadeiros seguidores de Cristo. Isso levou a um conflito teológico crucial.

A Mensagem de Gálatas

A principal mensagem de Gálatas é a justificação pela fé em Jesus Cristo. Paulo enfatiza que a salvação não vem pelas obras da Lei, mas pela fé em Cristo. Ele argumenta que a fé é o caminho para a liberdade espiritual e que os crentes não estão mais sob o jugo da Lei.

Relevância Contínua

A carta aos Gálatas continua a ser relevante hoje. Ela nos lembra que nossa salvação é baseada na graça de Deus e na fé em Cristo, não em nossas obras. Também nos desafia a não nos tornarmos escravos de legalismos religiosos, mas a abraçar a liberdade que temos em Cristo.

Conclusão

A Carta aos Gálatas é uma das joias teológicas do Novo Testamento. Ela nos ensina sobre a importância da fé em Cristo e da liberdade espiritual. À medida que exploramos os ensinamentos de Paulo nesta carta, somos lembrados de que a nossa salvação é um presente gracioso de Deus, recebido pela fé, e que somos chamados a viver em liberdade, servindo a Deus e aos outros com amor.

Boa leitura!